A linguagem do Antigo Testamento

A figura do redentor – go’el, em hebraico – a princípio não possuía nenhuma conotação religiosa. Num povo de natureza tribal como o de Israel, não existia um sistema legal estabelecido e instituído. A defesa dos direitos de cada um (a sua vida e propriedades, sobretudo), dependia da sua força e das suas relações, principalmente familiares.

O go’el era um parente ou familiar próximo, de preferência o irmão, a quem competia assegurar os direitos de alguém que caia em problemas. É uma figura instituída nos livros do Levítico e Deuteronómio. Caso um indivíduo era vendido como escravo (por causa de dividas, por exemplo), o go’el, o parente mais próximo deveria pagar o resgate para libertá-lo. Se perdesse as suas propriedades, o go’el deveria readquiri-las. Se um indivíduo fosse assassinado, o parente deveria vingá-lo. Também aqui se insere a lei do Levirato: «Quando dois irmãos moram juntos e um deles morre sem deixar filhos, a viúva não sairá de casa para se casar com um estranho; o seu cunhado casar-se-á com ela, cumprindo o dever de cunhado. O primogénito que nascer receberá o nome do irmão morto, para que o nome deste não se apague em Israel» (Dt 25, 5-6). Em síntese, o redentor surge como a figura de alguém que deve preservar e defender os direitos de um próximo em problemas, resgatando-o.

No contexto da Aliança em Israel, Javé é considerado e aclamado como o Redentor de todo o Povo. Esta aclamação parte da experiencia de libertação do Egipto, em que o povo, mantido como escravo, é resgatado da opressão graças à iniciativa de Javé. «Muito tempo depois, o rei do Egipto morreu. Os filhos de Israel gemiam sob o peso da escravidão, e clamaram; e, do fundo da escravidão, o seu clamor chegou até Deus. Deus ouviu as suas queixas e lembrou-Se da aliança que fizera com Abraão, Isaac e Jacob. Deus viu a condição dos filhos de Israel e teve compaixão dele» (Ex 2, 23-25). Em virtude da sua Promessa a Abraão, Deus abraça os direitos do povo e os põe em prática. Na verdade, Israel faz a experiencia de que, sem esta acção libertadora de Javé a quem atribuem a sua saída do Egipto, simplesmente não existiriam como Povo.

A Aliança que Israel celebra com Javé no Sinai, transforma-os em partners. Javé compromete-se com o destino do povo, com a sua sobrevivência; Israel compromete-se em viver os mandamentos da Lei, e a não aceitar as divindades dos povos vizinhos. «Portanto, se Me obedecerdes e observardes a minha aliança, sereis minha propriedade especial entre todos os povos, porque a terra toda Me pertence. Vós sereis para Mim um reino de sacerdotes e uma nação santa» (Ex 19, 5-6).

Para celebrar esta Aliança, relata o livro do Êxodo que Moisés realizou o ritual de um sacrifício de comunhão: «Moisés tomou metade do sangue e colocou-o em bacias; a outra metade do sangue, derramou-a sobre o altar. Pegou no livro da aliança e leu-o ao povo. Eles disseram: «Faremos tudo o que Javé mandou e obedeceremos». Moisés tomou o sangue e aspergiu com ele o povo, dizendo: «Este é o sangue da aliança que Javé faz convosco através de todas estas cláusulas» (Ex 24, 6-8).

É muito importante compreendermos o significado desta linguagem de sacrifícios, cultos e sangue: estará presente por toda a Bíblia, aparecerá nos escritos do Novo Testamento para falar da Redenção em Cristo, e fará parte da linguagem teológica. O sangue não possui na Bíblia a imagem actual de violência, sofrimento e morte. Pelo contrário, para um judeu, é o melhor símbolo para falar da vida, do que há de mais vital num ser. «Guarda-te de comer o sangue, porque o sangue é a vida, e não deves comer a vida com a carne» (Dt 12, 23).
Nos sacrifícios no templo de Jerusalém, os animais eram mortos, não tanto pela aniquilação, mas pelo seu sangue que era derramado no altar, e que exprimia a vida em comunhão com Deus. A pessoa que realizava um sacrifício, não se identificava com o animal morto, mas com o seu sangue, no qual colocava a sua vida, que entrega a Deus em comunhão para que a santifique. «Porque o sangue é a vida do corpo, eu vo-lo concedo, a fim de vos servir de purificação sobre o altar, pois o sangue é que faz expiação porque é vida» (Lv 17, 11). Mesmo a palavra sacrifício, no original latino, vem de sacrum-facere, fazer ou tornar sagrado. O seu significado na Antiguidade não é o mesmo que lhe atribuímos agora. Os sacrifícios cultuais, no Templo, estão em função da Aliança com Deus, a sua linguagem é a linguagem da comunhão, e não da morte. Mesmo compreender o significado semita de sangue nos ajuda a compreender a linguagem da Eucaristia.

Mas regressemos a Iavé como Redentor. São duas as experiencias fundamentais que o povo bíblico faz – e nós hoje também: a existência do sofrimento e a existência do pecado. Aqui, o pecado surge não tanto como infracção jurídica de uma determinada lei tipo código civil, mas como uma condição que impede o ser humano de o ser plenamente, ou seja, de viver em comunhão com Deus. O povo descobre-se, na sua história, pecador e infiel à Aliança: constrói altares aos ídolos estrangeiros, oprime o pobre, o órfão e a viúva, não constrói na Terra Prometida aquele Reino que corresponderia à Aliança. Os profetas surgem como a voz de Deus que acusa o Povo da sua infidelidade e o chama a regressar à Aliança.

No entanto, o anúncio profético não se limita a acusar o povo. Proclama, em primeiro lugar, a absoluta fidelidade de Deus à sua Aliança. Mesmo que o Povo não respeite a Aliança, Deus permanece fiél. Ele é a Rocha Firme. Os seus sentimentos para com o povo não mudam. O Deus que se revelou no Sinai, o Deus que libertou Israel do Egipto, continua a ser o Deus da Aliança: «Como poderia Eu abandonar-te, Efraim? Como poderia entregar-te a outros, Israel? Será que Eu poderia tratar-te como a Adama? Eu poderia tratar-te como a Seboim? O meu coração salta no meu peito, as minhas entranhas comovem-se dentro de Mim. Não Me deixarei levar pelo ardor da minha ira, não vou destruir Efraim. Eu sou Deus, e não um homem. Eu sou o Santo no meio de ti, e não um inimigo devastador» (Os 11, 8-10). Deus permanece fiel à Aliança, e esta fidelidade não depende de nenhum acto humano, de nenhuma compensação, mas simplesmente do seu Amor, da sua Misericórdia – as entranhas maternais de Deus, tão importantes para os profetas.

«Porque o teu marido é o teu Criador: o seu nome é Javé dos exércitos. Quem te redime é o Santo de Israel; Ele é chamado o Deus de toda a terra. Javé chama-te como a esposa abandonada e abatida, como a esposa da juventude, a repudiada: assim diz o teu Deus. Por um instante te abandonei, mas com imensa compaixão torno a chamar-te. Num ímpeto de ira, por um momento escondi de ti o meu rosto; agora, com amor eterno, volto a compadecer-Me de ti, diz Javé, teu Redentor. Como no tempo de Noé, agora faço a mesma coisa: jurei que as águas do dilúvio nunca mais iriam cobrir a Terra; da mesma forma, agora juro que não deixarei inflamar-se a minha ira contra ti e nunca mais te vou castigar. Mesmo que os montes se retirem e as colinas vacilem, o meu amor nunca se vai afastar de ti, a minha aliança de paz não vacilará, diz Javé, que Se compadece de ti» (Is 54, 5-10)

Além disso, essa fidelidade de Deus significa que Ele se torna o Redentor, o Go’el de Israel. Ele está presente e torna-se o defensor dos direitos daqueles a quem ninguém defende: o pobre, o órfão e a viúva. Os profetas chamam o Povo à conversão, a regressar à Aliança, para que Deus os liberte do seu pecado! Na linguagem bíblica, só Javé pode vencer o pecado, nunca o próprio pecador. Eis a Redenção, eis a Aliança: o Povo aproxima-se de Javé, para que a sua santidade os liberte do pecado: «Lavai-vos e purificai-vos, tirai da frente dos meus olhos as maldades que praticais. Deixai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem: buscai o direito, socorrei o oprimido, fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva. Então vinde e discutiremos - diz Javé. Ainda que os vossos pecados sejam vermelhos como a púrpura, ficarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o escarlate, ficarão brancos como a lã» (Is 1, 16-18). O pecador nada mais pode fazer do que voltar-se para Iavé, entregar-se nas suas mãos para que o liberte do seu pecado; e como cada individuo, assim todo o Israel. É Deus quem perdoa e reconcilia o Povo libertando-o do seu pecado! Eis a linguagem da Redenção.

É importante libertarmos o nosso pensamento e a nossa linguagem de tudo o que são noções pagas. A libertação do pecado nunca é acção do pecador mas de Deus, que santifica o pecador que se arrepende e converte. A prática cultual não servia para mudar os sentimentos de Deus, mas era manifestação da comunhão de vida – representada pelo sangue – que unida à santidade de Deus vence o pecado. O Deus da Biblia é a Rocha Firme, que não muda os seus sentimentos e permanece fiel à Aliança. Como Redentor, defende os direitos daqueles por quem ninguém se preocupa – os pobres, órfãos e viúvas – suscita profetas e servos que dêem a sua vida pela Aliança.

Sem comentários: