Um "nobre" discípulo de Jesus

27 de Setembro de 1696: nasce em Nápoles, no sul de Itália, Afonso Maria de Ligório, filho mais velho de uma família nobre da cidade. O pai, José, é um alto oficial da marinha napolitana. A mãe, Ana, vem de uma família de importantes advogados e juízes. Afonso viverá em pleno séc. XVIII. Comecemos por compreender um pouco o ambiente europeu nesta altura.

A segunda metade do séc. XVIII é marcada por grandes mudanças: a independência americana em 1783 e a revolução francesa em 1789, são a sentença de morte das monarquias absolutistas da Europa. É chamado o “século das luzes”: surgem nomes na filosofia e na literatura como Kant ou Voltaire, particularmente críticos da Igreja. Os monarcas europeus tentarão assegurar o seu poder absoluto, mas enfrentam uma resistência forte nas classes burguesas, ligadas ao comércio, defensoras de regimes liberais e parlamentares.

Ao nível económico e social assistimos a grandes desigualdades: por um lado, uma classe nobre, geralmente desocupada e detentora do poder; e outra grande parte da população na miséria, engrossando fileiras de desempregados, tanto nas grandes cidades como nos campos. Um marco simbólico destas mudanças é a invenção, em 1769, da 1ª máquina a vapor. Marca, na Inglaterra, o arranque da Revolução Industrial, que irá transformar o rosto da Europa e do mundo.

Como vemos, falar do séc. XVIII é falar de revoluções. Mas estas parecem, no pequeno estado de Nápoles, passar ao lado. A Itália só seria um país unificado no séc. XIX. Antes, é uma multiplicidade de cidades-estado autónomas. Em Roma, o Papa controla directamente um estado de razoáveis dimensões. Falamos ainda de um contexto em que o seu poder político na Europa era importante, embora estivesse em declínio. Nápoles variava entre o domínio do rei de Espanha e do rei da Áustria.

No sul de Itália, banhado pelo Mediterrâneo, o estado de Nápoles é um estado luxuoso. Como no resto da Itália, o poder político e o poder religioso não estão separados. Os filhos dos nobres são educados em colégios de congregações religiosas, masculinas e femininas. Os bispos e cardeais detêm uma certa influência política. Até o próprio Afonso, para ser advogado, terá de estudar direito civil e direito canónico!

Um pormenor: o número de padres, clérigos e freiras é verdadeiramente excessivo. Tirando uns poucos “santos”, verdadeiramente empenhados num trabalho pastoral junto dos pobres e com uma vida que condizia, a grande maioria vive na ociosidade. Grandes congregações religiosas vivem no luxo, em mosteiros e conventos. Alimentam-se, por um lado, do fervor religioso popular e, por outro, de contribuições e heranças de famílias nobres. Mas, atenção! O todo não faz as partes: temos grupos de verdadeiros apóstolos, homens bem preparados e preocupados na missão da evangelização. Afonso, por cuidado da sua mãe, crescerá no meio destes.

Eis-nos, portanto, com um primogénito nobre, napolitano. Crescerá, por um lado, sob uma apertada disciplina da parte do pai. Por outro, a mãe introduzi-lo-á na fé e na vida devota. Sonham para ele uma brilhante carreira e, acima de tudo, desejam que se torne um nobre íntegro. Grande parte da nobreza napolitana era, de facto, ociosa. Os Ligório são uma excepção: o pai passa mais tempo no mar, nas galeras, do que em casa. A mãe, contrariamente ao costume, é que raramente sai e toma nas suas próprias mãos a educação dos filhos. Afonso teria 3 irmãos e 4 irmãs.

Empenhar-se-á nos estudos. Aos 16 anos, facto relativamente normal para a época entre os nobres, conclui o curso de direito civil e canónico. É advogado. Parece que, pela sua competência, trabalhará para as grandes famílias napolitanas e só perderá um caso em 1723, ao fim de 10 anos, no que terá sido o seu último caso em tribunal.
Como qualquer nobre, Afonso terá uma educação onde se inclui também a música e a pintura. Estas duas artes ser-lhe-ão muito úteis mais tarde quando, nas missões, as utilizará na evangelização do povo, na sua esmagadora maioria analfabeto. É um dom do Espírito Santo: quando encontra espaço, consagra as nossas capacidades para as colocar ao serviço do Evangelho, onde serão verdadeiramente fecundas; são os carismas.

Era normal, no tempo de Afonso, as famílias nobres conduzirem os seus filhos, desde pequenos, para conventos e mosteiros. Só um irmão e uma irmã de Afonso, os mais novos, “escaparão” a isso. Os restantes vestirão os hábitos respectivos. Afonso, naturalmente, também “escaparia” a isso, por ser o primogénito. É ele quem deve continuar o nome da família. Ora, é claro que os pais de Afonso tratarão de, para ele, lhe obter um bom casamento, que servisse o interesse de continuar o nome da família e juntasse outra família nobre, com possibilidades materiais. Vemos Afonso, acompanhado do pai, a frequentar bailes e serões. O que acontece?

Desde pequeno, iniciado pela mãe, Afonso faz parte de grupos de jovens nobres que participam em dias de retiro e actividades orientados por padres, os mais bem preparados da diocese. Não há uma verdadeira educação “civil” separada da religiosa. Enquanto cresce, Afonso vai-se tornando mais activo. O seu maior trabalho de voluntário é no chamado “Hospital dos Incuráveis”, o hospital de último recurso de Nápoles, onde vêm morrer os mais miseráveis com as piores doenças da época.
O que temos é que Afonso, ao mesmo tempo que a sua imagem vai ascendendo na vida social napolitana pelos seus sucessos enquanto advogado e pelos esforços do pai, vai-se colocando questões quanto à sua vida. Por enquanto, os deveres de primogenitura vão-se impondo, mas escapa-se aos esforços casamenteiros do pai.

E eis que temos um acontecimento marcante: com 26 anos, Afonso perde um importante caso em tribunal. Ao que parece, é o seu primeiro caso perdido, e envolve corrupção pelo meio. Afonso terá descoberto, e abandona os tribunais. Considerá-lo-á a sua primeira conversão. Desiludido, Afonso passa mais tempo nas suas actividades no Hospital dos Incuráveis, e na capela, claro. Fará a experiência de ser chamado pelo Amor de Deus para ser mais. Nesse ano, decide ser padre.

Imaginemos qual terá sido a reacção do pai, que tantos projectos grandiosos alimentava para o seu filho! Estala a crise em casa, mas Afonso não cede. Só permanece em casa do pai, por vontade deste, durante o estudo da teologia. Na altura era normal filhos de importantes famílias estudarem teologia e viverem em casa e, mesmo depois de ordenados, continuarem em casa da família, sem trabalho pastoral. Afonso seria padre diocesano e, já que não seria advogado, seria ao menos bispo ou até mesmo cardeal – sonhava o pai. O prestígio era o mesmo.

Mas Afonso não parece muito para aí virado. Aceita a ordem do pai de viver em casa, mas escolhe o seu campo de acção: as periferias pobres de Nápoles. Lá acompanha padres em missões de catequização. Continua o seu trabalho no Hospital dos Incuráveis. E, a partir da sua herança como aluno brilhante de direito, empenhar-se-á no estudo da teologia. Já como diácono, ganhará fama em Nápoles pelas suas homilias, pregações e catequeses. E, em 1726, é ordenado padre. Tinha 30 anos.

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